sexta-feira, 18 de outubro de 2013

SERÁ QUE VALE APENA FAZER ACORDOS

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Carlos Sepúlveda
UM ACORDO ALÉM DA CONTA
       
       Antígona Loudiadis parece uma gatinha dengosa, como quando faz beicinho: agora, a gente vai brincar de quê? Diz com um jeito intimidador, um tantinho histérica. É muito inteligente, mas tirânica com seus subordinados. Tem a fama de gostar de risco e de saber ser convincente. Seu apelido é Addy. A dama em questão é funcionária graduada na casa Goldman Sachs International em Londres. Esta especialista em produtos financeiros complexos nasceu na Grécia e é bem arrogante. Diplomada em Oxford, ela se descreveu como uma pessoa “obcecada pelo trabalho, fumante inveterada com uma agenda lotada” Foi ela quem ajudou a Grécia a camuflar sua dívida. Graças a sua inventividade, o país pôde aderir à zona do euro em 2002, respeitando, formalmente, os critérios de Masstricht em termos de endividamento.
* &Do livro: La Banque, comment Goldman Sachs dirige le monde. Paris, Albin Michel, 2010., p 17-26
A montagem financeira de que Addy foi responsável forneceu uma pequena fortuna a seu empregador, provocando, nove anos depois, a mais grave crise da zona do euro.
GRECIA       No entanto, em 2001, a Grécia não fazia parte dos interesses do Goldman Sachs , absorvido à época pelos países emergentes que começavam a chamar atenção dos grandes bancos. O Goldman Sachs Internacional, por sua vez, focava seu interesse na Alemanha, Europa do Leste e a Turquia. O banco não tinha sequer filial em Atenas. Os dossiês gregos, a exemplo dos financiamentos do comércio marítimo, são tratados desde Londres onde operam os armadores helenos.
       Em 1999, assim que a criação do euro ficou acertada, a Grécia não conseguiu aderir à moeda única. No papel, as condições de participação no esquema acontecem por meio de critérios muito rigorosos, enunciados no tratado de Maastricht: dívida inferior a 60% do PIB e déficit orçamentário abaixo de 3%. A Grécia passa longe dessas metas. Na época, decididos a assentar a reputação da moeda única acolhendo o maior número possível de países, esquema de poderia dissuadir os especuladores (já?) a promover um ataque especulativo, os dirigentes franceses e alemães apressaram a Comissão Européia a aceitar logo a Grécia. A City bem como Wall Street deveriam engolir a pílula. Os dois redutos financeiros viam com má-vontade a chegada de um concorrente potencial – Frankfurt -, sede do Branco Central Europeu. Fascinado, como todos os italianos, pelos financistas anglo-saxões, o presidente da Comissão, Romano Prodi, resistia à expansão da zona do euro. E daí?.O comissário encarregado das questões econômicas e monetárias, o francês Yves Thibaut de Silguy, um dos arquitetos da transição para o euro, fez da perspectiva de expansão uma questão pessoal. Todos os países do novo clube, afinal, não mexeram os pauzinhos da contabilidade, para poder cumprir os critérios de Maastricht, maquiando seus déficits? No baile dos hipócritas, vale a máxima: sou, mas quem não é?
GRECIA-1       O governo grego pediu ao Goldman Sachs que ajudasse a encontrar meios pouco ortodoxos a fim de poder participar da zona do euro, no alvorecer da criação da nova divisa. Atenas queria, principalmente, esconder o tamanho de seus déficits. Para tornar isto possível, o gabinete conservador, dirigido por Constantin Caramanlis, pretende expurgar o peso das despesas militares dos critérios de despesa pública –  gastos substanciais em razão do conflito latente com a Turquia.
       Afinal, por que motivo Goldman Sachs recusaria tal solicitação, altamente remunerada, que era uma espécie de maquiagem oficial do orçamento? A despeito das dificuldades de relação com a esfera política, sempre imprevisível, a ajuda aos Estados está no centro das tarefas de um banco de negócios. Se os estabelecimentos europeus tendem a deixar este tipo de transação para os gabinetes dos especialistas em contabilidade, seus confrades americanos oferecem, rotineiramente e dentro da legalidade, este tipo de serviço. Outros países da União Européia apelaram para o conhecimento e prática das grandes instituições financeiras para “otimizar” a gestão de seus contas. A Itália fez exatamente isso com o banco americano J.P. Morgan.
       Para Goldman Sachs, a Grécia se tornou, de repente, um negócio da China. Como negar que um pequeno país com uma infraestrutura básica frágil, estatísticas de finanças públicas rudimentares, uma economia de mercado negro, tornando aleatórios os rendimentos dos impostos e taxas, não fosse sopa no mel? Um gigante financeiro exerce muito melhor seus talentos na Grécia, onde a bolsa de valores é desprovida de regras contratuais. O Estado embaralha o jogo econômico e os pactos acionários mais alambicados é que são regra geral.
       O império Goldman se interessa mais especialmente pela Grécia por uma razão adicional: a natureza de sua dívida. Trata-se de obrigações complexas, indexadas a critérios fluidos que se prestam, particularmente bem, à especulação. Os bônus do Tesouro carecem de liquidez. O calendário das emissões é aleatório. Em resumo: é bem o contrário da dívida francesa, por exemplo, que é simples, previsível, líquida e lastreada a um vencimento bastante preciso.
       Na corrida pelo euro e em face das especificidades da dívida grega, um terceiro fator atiça o interesse de Addy Loudiadis: a desorganização da Eurostat, o instituto europeu responsável pelas estatísticas, destinado a ser o árbitro oficial para gerenciar os critérios do tratado. O lançamento do euro, em primeiro de Janeiro de 2001, deixou a Eurostat numa saia justa, pois ela era a encarregada de equilibrar as estatísticas dos Estados membros a fim de conceber os números em escala continental. Trata-se de indicadores-chave para a elaboração da vigilância orçamentária e da política monetária do Banco Central Europeu. No entanto, tomados pela tormenta de um escândalo financeiro interno, o escritório das estatísticas está, por ocasião do caso grego, literalmente paralisado. Nada se fala sobre isto, seus dirigentes aceitam, sem pestanejar, as contas que lhes são apresentadas pelo governo grego à época.
       Em 2004, Michel Vanden Abeele, o novo diretor geral encarregado da reorganização da Eurostat, se recusa terminantemente a certificar as contas do país. Suas razões? A não compatibilização adequada de algumas despesas militares, notadamente a compra de aviões americanos e o fluxo das contas das dotações regionais da União Europeia. As razões dos Ministros das Finanças europeus, quais foram? Inexistentes. Jogaram a controvérsia para baixo do tapete, achando que, com isso, tudo ficaria esquecido…
       Addy Loudiadis, a própria, foi promovida a gerente-associada em 2000. O contrato com Atenas deve ter feito calar os invejosos, porque sua promoção é atribuída à política de “ discriminação positiva”, importada dos Estados Unidos e que beneficia o sexo dito frágil. As questões de ética e de moral são totalmente estranhas a esta mulher de ação que aproveita todas as ocasiões, para aparecer e brilhar, como boa oportunista que é. Seu salto alto, feito uma claquete em chão de sinteco, não atola no tapete das etiquetas do papo furado. Em sua tarefa, ela sabe tirar proveito da ajuda de uma equipe especializada nos negócios de divisas, uma equipe da mais reconhecida firma no que se refere ao mercado de matérias primas. Para atingir seus fins, ela vai se servir de um mecanismo pouco conhecido. Seu nome? Sistema de Cobertura de Risco, conhecido como Credit Default Swaps, os CDS. Simples como dar bom dia. Como Eureka.
       A esta altura dos acontecimentos, vamos tentar explicar o que são essas ferramentas complexas, incompreensíveis, que se tornaram símbolo de uma pérfida especulação, sob todos os aspectos. Embora o nome seja bárbaro, o funcionamento de uma CDS é simples. São contratos de garantia sobre uma dívida, afiançando ao credor que este será ressarcido mesmo que o devedor entre em falência. Oferecem, então, aos investidores a possibilidade de limitar os riscos associados às obrigações, quer sejam emitidas pelos Estados, quer pelas empresas privadas. Outra vantagem: o mercado paternal, de pai para filho, que este instrumento facilita é nebuloso. As transações seguem, então, ao abrigo dos privilégios, longe do controle das bolsas de valores e de suas regras contratuais, tudo sem intermediários nem identificação das operações, muito menos de seus autores.
       No caso das obrigações gregas, este mecanismo permite se proteger do câmbio transformando em euros a dívida inicialmente emitida em dólares. A taxa de câmbio escolhida é muito favorável ao Goldman Sachs. Ainda mais, o montante coberto pelas CDS´s ultrapassam (!)…a dívida pública grega!!! Ao modificar os prazos de re-embolso a seus credores, a Grécia se compromete a pagar ao Banco somas astronômicas até 2009 e isto em condições mais onerosas, que agravam ainda mais as combalidas finanças do país. Para o espírito da banca, essas condições, quase usurárias, não têm nada demais. Goldman Sachs não é Madre Teresa. O cliente, solicitante, não está em posição de força. Addy pula fora e dá um perdido. Nem mais, nem menos, nem muito, nem pouco…
       Seu plano passa como uma carta postal após um rápido exame do comitê de novas transações do Goldman Sachs International. “o dossiê foi habilmente manipulado. Tinha-se total controle da situação. Havia tanto dinheiro a ser ganho que as pessoas passavam batidas por cima do enfadonho relatório, entre dezenas de outros. Não tinha problema deixar as coisas para depois”. Assim se pronunciou um dos participantes da reunião de aprovação que, pouco tempo depois dos fatos, demitiu-se do Banco.
       A distinção entre as aquisições para “se cobrir” – os famosos CDS – e aquelas, cujo objeto é puramente especulativo, é muito difícil avaliar. Mas, quem se importa? Nos negócios com a Grécia, todo mundo ganha. A astúcia permite a Atenas fazer desaparecer, momentaneamente, bilhões de euros da dívida, como num passe de mágica. Goldman, por seu turno, embolsa a parte do leão e vê sua reputação de bom gestor da dívida soberana atingir os pináculos da glória.
       Porém, a longo prazo, os interesses assumidos pelo Estado grego se revelam mais pesados do que um simples empréstimo bancário. Sua credibilidade vai sofrer duramente. Com a credibilidade abalada, a Grécia parece hoje um passageiro clandestino da União Europeia.
       A nação grega olha, tradicionalmente, para o Ocidente, desde o século V, antes de Cristo; foram suas cidades que rechaçaram as hordas bárbaras da Pérsia. A União Europeia, de que a Grécia é membro desde 1981, aparece como a herdeira moderna das cidades gregas antigas. O euro é o sucedâneo da Liga de Delos que, na antiguidade, governou Atenas. Mas a história e seus grandes feitos escapam ao interesse de Addy. O bônus de fim de ano, não. O orgulho por nada dever senão a seu talento – maquiavélico –  e o gênio para adaptar-se às circunstâncias é que a orientam. Pouco importa se a armação não lhe permite frequentar o Panteão das Virtudes.
       Todavia, em 2006, Goldman Sachs toma cautelosa distância da Grécia. Para marcar posição, Addy se torna, apesar dos pesares, conselheira do Banco Nacional da Grécia (BNG), o primeiro banco comercial do país. Goldman tem um aliado de peso no seio do BNG, Petros Christodoulos. Este especialista em derivativos trabalha como trader no Goldman, em Londres, antes de chegar a Atenas, em 1998,para assumir um posto de direção no banco de comércio grego. Via uma sociedade off-shore, situada num paraíso fiscal americano, no Delaware, alguém transfere, sem mais nem menos, a dívida pública grega para uma conta no BNG, só para embaralhar as pistas.
       Em outubro de 2009, o socialista Georges Papandreu vence as eleições legislativas. Um mês depois, Gary Cohn, número dois do Goldman Sachs, desembarca em Atenas, acompanhado de vários investidores. Entre eles está  John Paulson, dono de fundos especulativos americanos, com seu nome. Grande cliente do Goldman, ele estará no centro mesmo do que será chamado “escândalo Abacus”, um fundo gerido pelo Banco que lhe permitirá fazer jogo duplo. Cohn e Paulson propõem ao novo governo – socialista!!! – fazer com o orçamento da Viúva o que fizeram com as despesas militares. Além do mais, Goldman oferece para a venda, amigavelmente, longe dos olhares públicos, uma parte da dívida grega a investidores baseados na China, país onde o Banco reina com autoridade.
       A aparência calma e serena de Georges Papandreu evoca, por vezes, a imagem de um sábio; ilusão que se desfaz logo, ante o reflexo malicioso de seus olhos azuis, iluminando um rosto angelical. Prudente, desconfiado, principalmente reservado, suas reflexões são metódicas. Não é muito do gosto dos banqueiros do varejo sair com as mãos abanando. Mas os apelos dos vendedores, desta vez, não funcionaram.
       No caso grego, de um lado, Goldman Sachs é remunerado na condição de banco-assessor do governo heleno; de outro, o próprio banco especulou com a dívida do país. Eis que, em plena crise do euro, sua rede de influência entra em cena. No Finantial Times  do dia 15 de fevereiro de 2010, Otmar Issing, ex-membro da diretoria do Banco Central Alemão, antigo economista-chefe do Banco Central Europeu, assina um texto vitriólico e hostil contra uma operação de resgate na Europa. Segundo o autor, para não colocar em perigo a zona do euro, Atenas deve se virar sozinha. Issing assina esta denúncia deixando de esclarecer que, desde 2006 ele é conselheiro internacional do Goldman Sachs. Ao mesmo tempo, o departamento de negócios do estabelecimento tem tudo a perder no caso de uma intervenção dos europeus. O Goldman derruba o euro, como todos os especuladores fazem. Em teoria, uma operação de resgate só pode fazer o euro subir. É a hidra com mil cabeças…
       As revelações sobre as estripulias do Goldman Sachs na Grécia desencadeiam clamor público. A chanceler Angela Merkel julga “escandaloso” que alguns bancos tenham sido capazes de provocar a crise do euro, ao ajudar a Grécia a maquiar suas contas. Por ocasião de um colóquio organizado em Londres, os primeiros-ministros espanhol, norueguês e britânico levaram seu apoio a um quarto candidato, seu colega grego. George Papandreu rejeita a pecha de “imprudência” do governo conservador de Caramanlis, seu antecessor, e sobre o Goldman Sachs. Para evitar uma re-edição do caso grego, a Comissão Europeia decide reforçar os instrumentos de vigilância e de sanção. Sozinha, ao final de uma pesquisa reservada, a Reserva Federal estima que o estabelecimento não pretende mais ajudar Atenas a esconder a extensão de seus déficits. Alguns veem, também, nesse caso, a influência do “Governo Goldman”.
       A crise grega se revela um maná para os “anões” de Nova Iorque. O banco embolsa comissões derivadas da ajuda fornecida ao governo grego. O Banco especulou, de maneira desavergonhada, contra as dificuldades da Grécia e contra o euro. Deu-se bem em ambos os casos.
       Entretanto, a polêmica tomou uma dimensão mundial. Diante da ameaça de ver sua reputação maculada, o orgulhoso Banco de Negócios, imbuído de sua superioridade, é chamado às falas. Goldman Sachs publica, em seu sítio na Internet, um comunicado afirmando que o impacto das operações em questão eram mínimos, considerando a situação orçamentária global. A dívida grega passou de 105,3% para 103,7% do PIB – quase nada – ao longo do período considerado.
       Gerald Corrigan, um dos sustentáculos do Império, é forçado a responder às questões do Parlamento Europeu. Com seu jeito bem treinado, digno de um anúncio de uísque raro, olhar matreiro, o velho presidente do Banco Central de Nova Iorque reconhece, com seu tom afável, a ajuda que a firma prestou para as maracutais nas contas gregas. Ele embasa suas explicações com um jargão técnico incompreensível, como uma nota só:  com o retrocesso, é obvio que as normas de  transparências deviam ser melhores
Para além dos clichês e dos preconceitos políticos, um fato se impõe: a especulação exaustivamente descrita aqui é também um elemento importante para o bom funcionamento dos mercados, melhorando sua liquidez e seu fluxo, facilitando as transações e assegurando maior transparência nos negócios. Esta atividade contribui, além disso, para melhor partição do capital. O especulador é um desbravador para o investidor, pois, sob o disfarce da respeitabilidade, acaba por apostar tanto na alta quanto na baixa das ações. Ao atacar a Grécia e o euro, os mercados mandam um recado importante – e saudável—aos políticos; o déficit orçamentário se tornou incontrolável. Deste ponto de vista, é inegável: desempenham um papel significativo, a seu modo.
       Dentro das circunstâncias, a defesa do Goldman Sachs é simples. A Grécia negou a lógica da zona do euro, centrada na disciplina orçamentária. Quanto aos aspectos éticos, Atenas é que deve avaliá-los. O Banco se satisfaz em desempenhar um papel meramente técnico e satisfazer seu cliente, que é, por acaso, um Estado.
       Goldman Sachs não terá infringido, assim parece, nenhuma norma legal. Por outro lado, a organização ultrapassou uma tênue linha amarela, a da deontologia de uma poderosa casa bancária, difícil de definir, mas que não deve ficar tão vulnerável.


       “Uma grande profissional”, repetem os superiores de Addy depois do golpe de 2001. Antigone Laudiadis é, então, promovida à direção de uma companhia de seguros criada pelo Goldman Sachs para explorar produtos financeiros ligados à esperança de vida. Algumas vezes, a fortuna sorri aos audaciosos.

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